Após a morte de um familiar, há que tratar da burocracia, formalizar a transmissão da herança e partilhar os bens deixados. Neste artigo, vamos esclarer alguma dúvidas que pondem surgir nestas alturas.
É fácil sentir-se perdido perante a perda de um ente querido, numa altura em que há um conjunto de obrigações a cumprir. A primeira coisa a tratar é do registo de óbito. O delegado de saúde ou outro médico emite um certificado da morte, que permitirá solicitar, no prazo de 48 horas, o pedido de registo junto da Conservatória do Registo Civil. Este procedimento é gratuito e muitas agências funerárias encarregam-se desta obrigação, em substituição dos familiares do falecido.
Quem fica como cabeça-de-casal?
A gestão da eventual herança deixada pelo falecido tem de ser conduzida pelo cabeça-de-casal, até que os bens sejam partilhados. A pessoa chamada a assumir esta função será, pela seguinte ordem:
- o cônjuge sobrevivo não separado judicialmente de pessoas e bens, se for herdeiro ou tiver direito a metade dos bens do casal (meação);
- o testamenteiro, salvo declaração do falecido em contrário;
- os parentes, desde que herdeiros legais. A atribuição é feita ao mais próximo (filho, por exemplo). E, entre os mais próximos, ao que vivia com o falecido há, pelo menos, um ano;
- os herdeiros testamentários, ou seja, aqueles que são abrangidos pelo testamento, sendo dada preferência ao mais beneficiado e, em caso de igualdade, ao mais velho.
Se nenhum dos herdeiros quiser esta responsabilidade, é preferível entregar a administração da herança a outra pessoa (mesmo que não seja herdeiro), mas tem de haver unanimidade. Na falta de acordo, a escolha pode ser feita pelos tribunais. Só em condições especiais o herdeiro designado poderá recusar o cargo. Por exemplo, se tiver mais de 70 anos ou uma doença que impossibilite tais funções.
Caso um herdeiro se sinta lesado com a atuação do cabeça-de-casal e pretenda afastá-lo, poderá propor o seu afastamento, desde que comprove que ele:
- ocultou bens ou doações feitas pelo falecido e/ou indicou doações ou encargos inexistentes;
- administrou o património hereditário sem prudência nem zelo;
- é incompetente para o exercício do cargo.
Certidão de óbito em papel ou versão online
A certidão de óbito comprova o falecimento. Pode requerê-la numa conservatória do registo civil, numa loja do cidadão ou num dos mais de 80 Espaços Registos. Custa 20 euros. Se tiver como finalidade requerer prestações sociais, o preço desce para metade.
Se não quiser ou não puder deslocar-se a um destes serviços, pode requerer uma versão online da certidão, que custa 10 euros. O pedido é feito na plataforma Civil Online, que fornece um código de acesso à certidão. Durante seis meses, o documento fica disponível para consulta e tem os mesmos efeitos legais que a versão em papel.
Quem é herdeiro?
Quando se pretende deixar a herança aos chamados herdeiros legitimários (cônjuge, descendentes e ascendentes), não é preciso fazer testamento. Mas para beneficiar mais alguém, como a pessoa com quem vive em união de facto ou um irmão (no caso de o falecido deixar cônjuge, descendentes ou ascendentes), deve expressar a sua vontade por escrito. É também o meio adequado para reconhecer uma dívida, substituir um testamento anterior, perfilhar ou deserdar e nomear um tutor para um filho menor (substituto dos pais, caso estes morram), fixar legados ou indicar substitutos para os herdeiros, caso estes não possam ou não queiram aceitar a herança. O testamento permite ainda determinar o tipo de cerimónia fúnebre, entre outras.
O mais comum é não haver testamento e os bens serem divididos pelos herdeiros definidos pela lei, por esta ordem: cônjuge e descendentes, cônjuge e ascendentes, irmãos e seus descendentes, outros parentes na linha colateral até ao 4.º grau e o Estado.
Os herdeiros mais chegados ao falecido são os primeiros a ser chamados à sucessão, excluindo o direito de herdar dos mais afastados. Se, por exemplo, o falecido deixar cônjuge e filhos ou só estes últimos, os seus pais não serão chamados à sucessão. Se não deixar filhos, mas os pais sobreviverem, os seus irmãos não herdarão e assim sucessivamente.
Dentro de cada classe, os parentes mais próximos têm prioridade. Ou seja, os pais excluem os avós; os filhos afastam os netos e os parentes de 3.º grau impedem os de 4.º grau de receber algum bem. No entanto, se o falecido tinha vários filhos, no caso de um deles já ter morrido, os netos que sejam seus filhos herdam a parte que seria do seu progenitor. Se não sobreviver nenhum parente até ao 4.º grau da linha colateral (primo, sobrinho-neto), a herança vai para o Estado.
Para beneficiar outras pessoas, deverá fazer um testamento. Outra possibilidade é a utilização de uma convenção antenupcial, que, como o nome indica, é feita antes do casamento. Nesta, os futuros cônjuges também podem renunciar reciprocamente à herança do outro. Mas pode não ser livre de distribuir os bens a seu bel-prazer. A lei protege o cônjuge, os ascendentes e os descendentes (herdeiros legitimários), garantindo-lhes uma quota do património. Trata-se da “quota indisponível” ou “legítima”, parte da herança que foge à livre disposição do seu titular, e que varia consoante os herdeiros.
Para calcular esta quota, há que ter em conta o valor dos bens na data do óbito e dos doados, as despesas sujeitas a colação (correspondem às doações feitas em vida a descendentes que sejam herdeiros – e somente a eles – sendo somadas ao quinhão da pessoa em causa) e as dívidas da herança. O capital proveniente de um seguro de vida é exceção a estas regras, pois qualquer pessoa pode ser beneficiária. É até possível que esse capital ultrapasse o valor do património deixado em herança.
Apurados todos os herdeiros, o cabeça-de-casal deve proceder à habilitação de herdeiros num cartório notarial ou Balcão Heranças. Serve para identificar os herdeiros do falecido. Só quem consta da habilitação de herdeiros tem direito a parte da herança.
Dívidas também são herdadas
Ninguém é obrigado a aceitar uma herança, mas se a aceitar, tem de recebê-la por inteiro, incluindo eventuais dívidas. Ainda assim, as dívidas do falecido só têm de ser pagas até se esgotar o valor correspondente ao da herança, mas cabe ao herdeiro provar que já não há mais bens para saldá-las. Por isso, poderá ser interessante proceder a uma aceitação a benefício de inventário: só respondem pelas dívidas os bens que constem do inventário. Ao herdeiro está vedada a possibilidade de impor condições para a aceitação.
Se, após o falecimento, um herdeiro passou a utilizar os bens do falecido como se fossem seus ou a residir na casa dele, entende-se que aceitou a herança. Trata-se da “aceitação tácita”. Mas esta também pode ser “expressa”, quando o beneficiário declara por escrito que é essa a sua intenção. Para tal, basta enviar uma carta ao cabeça-de-casal. Este direito de aceitar ou repudiar os bens caduca 10 anos após ter conhecimento de que é beneficiário da herança.
Já se o herdeiro quiser rejeitar a herança, deve manifestar o repúdio sempre por escrito e seguindo as regras para a alienação da herança. Por outras palavras, se a herança contiver bens imóveis, deve fazê-lo por escritura pública ou documento particular autenticado. O cônjuge do herdeiro tem de dar o consentimento, exceto se forem casados no regime de separação de bens. Do documento de repúdio deve constar se tem ou não descendentes. Estes podem querer aceitar a herança. Se os descendentes forem menores, os pais devem pedir autorização ao Ministério Público para repudiar. Para os bens móveis, basta assinar um documento particular. Recusada a herança, o quinhão vago será disputado pelos restantes herdeiros, privilegiando-se o “direito de representação”. Se, por exemplo, o pai repudiou a herança do avô, o neto é chamado a aceitá-la.
Animais não podem herdar
Apesar de os animais de companhia já não serem considerados “coisas”, não têm capacidade sucessória. De acordo com o Código Civil, tal está reservado ao Estado e a todas as pessoas nascidas ou concebidas ao tempo da abertura da sucessão (ou seja, no momento da morte do seu autor). Também têm capacidade sucessória, por exemplo, as pessoas coletivas e as sociedades.
Assim, os animais de companhia não podem receber heranças. No entanto, nada impede que o dono deixe, por testamento, uma parte da herança a uma determinada pessoa, sob a condição de esta cuidar do seu animal de companhia (alimentar, levar ao veterinário, levar à tosquia, entre outros cuidados).
Relação de bens nas Finanças
O cabeça-de-casal tem até ao final do terceiro mês após a morte do familiar para participar a ocorrência ao serviço de Finanças, apresentando o modelo 1 do Imposto do Selo. Deverá levar a certidão de óbito e os documentos de identificação da pessoa falecida e de cada um dos herdeiros. Se existir um testamento ou uma escritura de doação, estes terão de ser também apresentados. Simultaneamente, deve ser entregue o Anexo 1, com uma listagem dos bens do falecido (relação de bens) e o respetivo valor.
Por lei, a transmissão de bens para cônjuges e para descendentes ou ascendentes (filhos, pais, netos ou avós) é gratuita. O mesmo já não acontece quando os herdeiros são, por exemplo, irmãos ou sobrinhos do falecido. Neste casos, é cobrado imposto de selo à taxa de 10% sobre o valor total dos bens declarados.
Partilhar os bens
A partilha dos bens pode ser pedida por qualquer herdeiro. Se houver acordo entre todos, basta dirigirem-se a um cartório notarial ou ao Balcão Heranças. Não havendo acordo, não sendo possível contar com a participação de, pelo menos, um dos herdeiros ou ainda em caso de incapacidade de um deles, procede-se ao inventário dos bens, que pode avançar num cartório notarial ou num tribunal. É necessário apresentar a certidão de óbito e a relação dos bens, bem como identificar todos os herdeiros. Também quando existam herdeiros menores, é natural que o Ministério Público, para salvaguarda dos interesses destes, requeira a abertura de inventário.
A partilha pode ser impugnada, por exemplo, se incidiu sobre bens que não faziam parte da herança. Neste caso, o beneficiário a quem foram distribuídos os bens alheios é indemnizado pelos restantes na proporção dos quinhões recebidos.
Como se processa o inventário?
Qualquer um dos interessados pode dar início ao processo de inventário. Aqueles, por regra, são os herdeiros, mas também pode ser, por exemplo, um credor. Em processos relativamente simples, nos quais haja “apenas” desacordo quanto à distribuição dos bens, ou seja, necessário apurar o que constitui a herança, é indiferente optar pelo notário ou pelo tribunal, até porque o processo é idêntico. A decisão cabe a quem iniciar o processo. Mas só alguns notários prestam este serviço. Ao contrário do que sucedia até 2020, não é imperativo dirigir-se a cartórios do local onde ocorreu o falecimento: o processo pode desenvolver-se, por exemplo, na área de residência da maioria dos interessados ou onde se encontre a maior parte dos bens imóveis. Já o tribunal tem de ser o do local do óbito.
Se o inventário surgir na sequência de um processo judicial, terá de decorrer em tribunal. O mesmo sucede se alguns herdeiros não puderem participar diretamente, por estarem ausentes ou sofrerem de incapacidade permanente, e nos casos em que o Ministério Público entenda que, de outro modo, não estão acautelados os direitos dos menores. Se houver questões mais complexas, como verificar a validade de um testamento ou determinar se certa pessoa é herdeira, o inventário também deve avançar no tribunal.
Preciso de advogado?
Não é obrigatório ter advogado, embora este dê alguma segurança, se for preciso tomar decisões relativamente a matérias que o consumidor não domina. A lei só exige a intervenção de um advogado quando está em causa a discussão das chamadas questões de direito, como determinar se alguém é herdeiro, ou para interpor recurso.
Quais as formalidades para iniciar o processo?
O requerimento inicial deve identificar o falecido e indicar a sua última residência, a data e o lugar do óbito. Se for apresentado pelo cabeça-de-casal, este deverá apresentar provas de que lhe está atribuída uma tal função – por exemplo, o facto de ser cônjuge ou filho mais velho – e juntar um compromisso de honra do seu “fiel exercício”, com assinatura reconhecida.
O requerimento deve ainda ser acompanhado da lista de herdeiros – e de documentos a comprovar que o são (por exemplo, certidões de nascimento) -, com indicação dos respetivos cônjuges e dos regimes de bens dos casamentos. A certidão de óbito do proprietário dos bens, eventuais escrituras de doação, testamentos e convenções antenupciais que contenham disposições relacionadas com a sucessão também devem fazer parte do processo. O mesmo acontece com a relação dos bens sujeitos a inventário, se existir, e respetivos valores, dos créditos e das dívidas da herança. Estes devem ser descritos em separado, com identificação dos devedores e dos credores.
Caso o requerente não seja o cabeça-de-casal, deve identificar quem tem essa responsabilidade, além de preencher o requerimento, fornecer os dados do falecido e acrescentar o máximo dos elementos já referidos. O processo é, depois, apreciado pelo juiz ou pelo notário, que verifica eventuais falhas e solicita a respetiva correção. Quando tudo estiver conforme, os interessados diretos na partilha e, se necessário, o Ministério Público é informado da abertura do processo. Quando o requerimento não tenha sido entregue pelo cabeça-de-casal, este é informado de que, no prazo de 30 dias, deve confirmar, corrigir ou completar os dados do processo. Se não o puder fazer, tem de justificar e pode pedir a prorrogação do prazo.
Todos os herdeiros são notificados da abertura do inventário, podendo opor-se ao mesmo ou contestar algo que dele conste no prazo de 30 dias. Os visados pela reclamação são informados e têm 30 dias para responder. São, depois, convocados para audiências e conferências de interessados, de forma que possam chegar a acordo quanto à partilha.
Distribuição total ou parcial
A distribuição pode ser feita bem a bem ou por lotes. Quando apenas uma pessoa se mostra interessada num item ou num conjunto de bens, o mesmo é-lhe atribuído. Se exceder a sua parte da herança, terá de compensar os restantes; se, pelo contrário, ficar aquém daquilo a que tem direito, continua no processo de partilhas. O mesmo acontece a quem tenha recebido algo, através de doação do falecido em vida. Se houver vários interessados num bem, pode fazer-se a divisão de forma equitativa ou proporcional ao que cada um tem direito. Caso se trate de um bem indivisível ou cuja divisão reduza significativamente o seu valor, pode ser sujeito a licitação dos interessados ou sorteado. Nas diversas fases do processo, o juiz ou o notário devem incentivar os herdeiros a alcançarem uma solução amigável, apontando caminhos.
Quando o acordo não é possível
Existem várias opções. Na conferência de interessados, pode iniciar-se um processo de licitação dos bens entre os herdeiros. Cada um apresenta propostas (à semelhança de um leilão) para o que lhe interessa, ganhando a oferta mais alta. Este é o valor que entra nas contas: se a pessoa tiver direito a 5 mil euros e oferecer 7 mil por uma propriedade, terá de devolver 2 mil à herança. Cada licitação começa pelo valor atribuído ao bem. Contudo, até ao momento em que abre o período de ofertas, qualquer interessado pode solicitar a avaliação do mesmo, por não concordar com o montante, desde que apresente os motivos da discordância. A avaliação deve ser feita em 30 dias, por um ou vários peritos, em regra, designados pelo tribunal. Existe também a possibilidade de os herdeiros escolherem um perito.
Se, ainda assim, a questão não ficar resolvida, passa-se ao sorteio. Finalizados os procedimentos, os interessados são notificados para, no prazo de 20 dias, apresentarem propostas de mapa de partilha, com a parte que cabe a cada um. Havendo divergências entre os diversos mapas enviados, o juiz ou o notário acertam as agulhas, de acordo com o que ficou decidido, e elabora-se o mapa definitivo. Os interessados são informados, podendo ainda reclamar. Decididas todas as questões, concretiza-se a partilha, através de uma sentença do tribunal, que, claro, pode ser alvo de recurso. Se algum dos herdeiros pretender receber o que lhe cabe antes de encerrado o processo de inventário, poderá ter de prestar uma caução.
E os bens doados?
Não é possível em vida procurar alterar as regras sucessórias, oferecendo, por exemplo, bens a um dos filhos, de forma a beneficiá-lo em relação aos demais. A lei obriga a que o montante correspondente a doações feitas a descendentes, e somente a eles, seja somado ao quinhão da pessoa em causa (a chamada “colação”). Se o total prejudicar a quota dos restantes herdeiros legitimários, poderá ser reduzido. Assim, presume-se que o falecido pretendia apenas adiantar-lhe uma parte dos bens e não beneficiá-lo em detrimento dos outros herdeiros. No entanto, pode, no momento da doação ou por testamento, dispensar a colação, deixando a um dos herdeiros a parte correspondente à quota disponível. Este acabará eventualmente por receber mais do que os outros.
A colação não se aplica a despesas com casamentos, prestação de alimentos e, por exemplo, auxílio de um filho no início da sua vida independente, de acordo com o que seja normal tendo em conta a condição social da família.
Conclusão
Estas alturas nunca são fáceis e sabemos que as heranças, por vezes, tornam-se processos chatos e que só trazem picardias entre os familiares.
O importante é manterem a calma e chegarem a uma decisão em conjunto.
No caso que seja o único herdeiro, o processo assim acaba por ser simples e fácil.